Ainda a propósito da crise no Reino Unido – o modelo neoliberal em crise profunda — Introdução, por Júlio Marques Mota

 

10 m de leitura

Introdução

 Por Júlio Marques Mota

Em 15 de Outubro de 2022

 

Caros argonautas

 

Há dias publicámos uma pequena série de 6 textos sobre a atual crise no Reino Unido, intitulada “O modelo neoliberal em crise profunda – o exemplo inglês”.

Em sequência das minhas leituras sobre o assunto, troquei mensagens com Benjamin Braun – um politólogo do Instituto Max Planck, doutorado em Ciência Política pela Universidade de Warwick e pela Universidade Livre de Bruxelas -, resumindo a minha visão sobre a crise financeira no Reino Unido e que transcrevo a seguir:

De Júlio Marques Mota

Em 9 de outubro de 2022

 

Caro Benjamim Braun

Sou professor reformado de Economia Internacional na Universidade de Coimbra. Trabalho pro buono para um blogue A Viagem dos Argonautas e um dos responsáveis pela secção de economia e política deste blogue.

Neste momento, estou a publicar textos sobre a crise desencadeada em Inglaterra e onde se diz que os fundos de pensões desempenharam um papel fundamental. Gostaria de explicar em termos claros, mas sobretudo em termos correctos, aos nossos leitores quais os mecanismos que levaram à situação de pânico dos mercados.

Neste sentido, procurei por textos disponíveis, na Web e encontrei o seu artigo. Gostei tanto dele que o sugeri como leitura indispensável para um dos meus amigos académicos e um dos principais especialistas portugueses em assuntos de pensões.

No entanto, no seu artigo não encontrei nada que quisesse ler agora. Fiquei com as referências bibliográficas para mais tarde e com uma maior consciência do que os fundos de pensões representam macroeconomicamente. Achei muito útil lê-lo e eventualmente publicá-lo na nossa língua portuguesa, se me for permitido fazê-lo.

Quanto à compreensão do que aconteceu agora em Inglaterra, deixe-me explicar a minha leitura do que aconteceu:

    1. Os fundos de pensões receberam o dinheiro das contribuições dos trabalhadores.
    2. Compram as obrigações do Tesouro com classificação A.
    3. Vão aos mercados de capitais para angariar dinheiro (por acaso “x” vezes o dinheiro utilizado para comprar obrigações do Tesouro) e deixam como garantia os títulos relacionados.
    4. Investem em fundos hedge, em transacções de alto risco.
    5. O BoE quer combater a inflação, retirando dinheiro dos mercados. Vende obrigações do Tesouro que detém na sua carteira.
    6. Ao mesmo tempo, o governo anuncia que vai aumentar o défice através da ida ao mercado com a venda de obrigações do Tesouro.
    7. As operações 5 e 6 conduzem a uma queda no valor das obrigações e a um aumento das taxas de juro. Os títulos caem. O valor das garantias depositadas nos bancos cai. Há chamadas de margem. Os fundos de pensões não têm dinheiro.
    8. Há agora novas vendas de títulos pelos fundos de pensões para conseguir que o dinheiro seja entregue aos bancos como garantia, uma vez que o valor desta garantia caiu.
    9. Após as operações 5, 6 e 8, aparecem especuladores em cena e simultaneamente com tudo isto, actuando em dois níveis – títulos de venda a descoberto e libras contra dólares.

 

Todas estas operações geraram o pânico, e isto explica o que aconteceu. Será isto assim? Gostaria que me desse a sua opinião ou que me corrigisse ou sugerisse artigos para melhor compreender a situação.

 

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De Benjamin Braun

Em 9 de Outubro de 2022

 

Caro Júlio,

 

Muito obrigado pelo seu e-mail e pelas suas amáveis palavras sobre o meu artigo.

Na minha opinião, resumiu de forma muito clara e precisa o desastre do fundo de pensões britânico.

Para uma discussão interessante sobre o assunto com enfoque nos mercados emergentes, ver este artigo de Bonizzi e Kaltenbrunner: https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0308518X18794676?casa_token=EqKVL7L6KfUAAAAA%3ABqZ4gmeKZZnpCiuqb-t8JaM7_R0czfP1IMBBics5fph_btFpdQ9jbQmVYtn8tegqT2TOUAcVzWv5MvtB

 

Os melhores votos,

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Os jornais dizem-nos hoje que Liz Truss demite o ministro das Finanças. Dir-se-á que o ministro apresentou um miniorçamento de que ninguém gostou e os mercados corretamente reagiram, interpretando o sentimento geral. O ministro sai, logo cumpriu-se a vontade da City e fica tudo bem, é o que se poderá pensar em termo do modelo dominante. Conclusão: são os mercados que estabelecem os governos, são os mercados que ditam as políticas que os governos devem praticar.

Bom, pessoalmente penso que não é nada assim. Penso que o problema não é o chanceler do Tesouro ser incompetente. Ademais, o Chanceler do Tesouro de Truss é um professor universitário, foi ministro de Teresa May, é um homem de cor numa Inglaterra racista e chegar onde chegou nestas condições só pode ser porque é um homem que academicamente tem muito mérito. O problema será antes o de um sistema e nunca de um homem.

Dir-me-ão: mas diga-me o que pensa sobre a redução dos impostos para os mais ricos, de 45% para 40%? No quadro do mainstream onde se situam os conservadores vejamos uma das vozes críticas de Truss, Victor Hill, diz-nos duas coisas bem simples:

“Tomemos o desmantelamento da taxa mais elevada do imposto sobre rendimentos de 45 por cento sobre rendimentos superiores a £150.000. Foi o orçamento de Nigel Lawson de 1988 que aboliu a faixa dos 60 por cento e fixou a taxa superior do imposto sobre o rendimento em 40 por cento. Durante os 10 anos do governo de Blair, a taxa mais alta do imposto sobre o rendimento manteve-se a esse nível. Foi o governo Brown-Darling que aumentou a taxa mais elevada do imposto sobre o rendimento para 50 por cento, na sequência da crise financeira de 2008-09. Depois o governo de Cameron-Osborne reduziu a taxa mais elevada para 45% – e as receitas fiscais aumentaram em resultado disso.

Aritmeticamente, o desmantelamento da taxa de 45 por cento custará apenas 2 mil milhões de libras – uma soma insignificante no esquema das coisas. O argumento de que o total dos impostos cobrados a pessoas com rendimentos elevados, tais como banqueiros e gestores de fundos de cobertura, que se deslocariam de Nova Iorque e de outros locais para viverem em Londres, irá inevitavelmente aumentar, é credível. Politicamente, no entanto, anunciar a eliminação da taxa de imposto sobre o rendimento mais elevada, enquanto se eliminava o limite máximo para os bónus dos banqueiros, foi facilmente interpretado como satisfazer os ricos à custa dos pobres. E essa foi a narrativa dominante na Conferência do Partido Trabalhista em Liverpool esta semana.” Fim de citação

Quanto aos bónus dos banqueiros num outro texto o mesmo Victor Hill diz-nos que isso corresponderia a que a City, o seu eterno sonho, se libertasse das amarras das condicionantes derivadas da regulação tentacular de Bruxelas.

Dito de outra maneira ninguém do mainstream está contra estes dois faróis (desmantelamento da taxa máxima do imposto sobre o rendimento e eliminação do limite máximo dos bónus dos banqueiros) do neoliberalismo estilo Margaret que foram impostos, creio eu, não pelo chanceler do Tesouro mas pela Primeira-ministra Liz Truss como sinal expresso de que ela é a segunda Dama de Ferro. A primeira Dama de Ferro com o álcool ingerido no fim da vida deve estar a enferrujar em paz e a segunda, produzida por uma muito má siderurgia artesanal está a desfazer-se ao sair da forja. O que o mainstream critica não é a criação política destes faróis, é o momento em que quer que estes sejam ligados à corrente. Veja-se: pratica-se o sonho dos banqueiros e dos traders da bolsa e estes agentes dos mercados querem a seguir derrubar o governo. Pelo caminho embolsam uns muitos milhões de libras e o Chanceler do Tesouro cai, e cai porque todo o seu plano económico, todo ele, é mau, dizem-nos. Portanto este deve sair, Truss, a nossa segunda Dama de Ferro deve, para já, continuar.

Pensar deste modo é esquecer uma outra realidade bem mais dura: a Inglaterra, tal como a Europa, está em profunda crise, crise económica, financeira, social- as greves sucedem-se, mas mais que isso, em crise por falta de capacidade política para inverter o caminho para o grande colapso deste país. Não esquecer que o líder trabalhista, a maior força da oposição, do ponto de vista de capacidade política, não é melhor do que Truss.

Curiosamente, os graves problemas de fundo da Inglaterra são exatamente os mesmos que os da Europa, o que significa que a razão principal do que aconteceu e está a acontecer se deve menos ao azar do Chanceler do Tesouro do que ao modelo económico assumido por Truss que tem sido o mesmo, com diferenças de detalhe apenas, do modelo que constitui a matriz europeia. Hoje em ambas as regiões quer-se mais austeridade, subida das taxas de juro, que as autoridades políticas europeias e inglesas vão ao mercado à procura de capitais, pretende-se reduzir a criação de moeda pelos respetivos bancos centrais Banco de Inglaterra e BCE onde os respetivos balanços estão sobrecarregados de dívida pública, pretende-se que os mercados de trabalho sejam ainda mais disfuncionais para se reduzir os custos salariais, na luta contra a inflação, etc.,etc. !

Não tenhamos dúvida do paralelo existente entre o que se passa na Inglaterra e o que se pode antever que se venha a  passar na União Europeia e, se dúvidas há, veja-se um documento interno do governo alemão (original aqui) datado 05/08/2022 onde se diz:

(P)ropomos os seguintes princípios orientadores:

(1) Os objetivos centrais das regras orçamentais da UE são assegurar a sustentabilidade da dívida e a solidez das finanças públicas. Deve ser implementada uma estratégia de redução da dívida que assegure a estabilidade e facilite o crescimento nos estados-membros através da redução gradual dos défices orçamentais.

A capacidade de um país para tomar medidas eficazes depende das suas finanças públicas. A fim de responder adequadamente a crises, os governos têm de reduzir níveis elevados de dívida, e têm de criar amortecedores financeiros em tempos de boas ou normais condições económicas. Os participantes no mercado financeiro devem ter confiança na sustentabilidade da dívida de cada Estado membro individual.

Por conseguinte, assegurar finanças públicas resilientes e espaço orçamental exigirá uma redução gradual e suficiente da dívida (o numerador no rácio da dívida) em relação ao PIB (o denominador no rácio da dívida), particularmente nos estados-membros com níveis de dívida significativamente elevados.

No entanto, o cumprimento rigoroso da “regra 1/20” sobre a redução da dívida pode exigir demasiados ajustamentos por parte de certos estados-membros. Portanto, a fim de evitar caminhos de ajustamento irrealistas, mas ainda assim reduzir os rácios da dívida de forma a assegurar a estabilidade e facilitar o crescimento, os estados-membros poderiam concordar explicitamente que o cumprimento integral da vertente preventiva do Pacto de Estabilidade e Crescimento é suficiente para se qualificar como cumprimento da regra 1/20.

A médio prazo, uma combinação de (a) uma redução consistente e gradual do défice na vertente preventiva com (b) políticas económicas e orçamentais favoráveis ao crescimento contribuirá para níveis adequados de redução da dívida.

Este processo de redução da dívida deve ser apoiado por melhorias na aplicação das regras orçamentais, incluindo o início e implementação de procedimentos de défice baseados em regras.

Ao ler este texto de agora, sentimo-nos projetados para a grande crise da dívida pública que gerou uma década perdida em Portugal, Espanha, Grécia, Chipre, Irlanda, e muitos estragos noutros lados também. É nisso que os alemães estão a pensar? É a pergunta que vos deixo.

Por isso sugiro-vos dois textos, a serem lidos pela seguinte ordem: o primeiro sobre o retorno da luta de classes na Inglaterra e o segundo sobre o Chanceler do Tesouro.

Estes textos serão publicados amanhã e depois de amanhã.

 

 

3 Comments

  1. Peço imensa desculpa pelo meu atrevimento de lhe por uma questão, uma vez que nada percebo de economia e finanças, vou lendo aqui e ali mas, por falta de bases, pouco fico a saber. A questão é a seguinte: o que são “obrigações do Tesouro”, “fundo de pensões”? o seu significado é universal, ocidental, europeu, português? No meio de tudo isso o que são os nossos certificados de aforro? Se entender não responder continuarei a seguir este blogue com o mesmo interesse. E bem haja pelo seu empenho em tanta tradução que faz para nos esclarecer. Cumprimenta Méri Almeida

    1. Muito obrigado Méri pelo seu comentário. Neste blog, os comentários são sempre benvindos, desde que não sejam insultuosos, o que não é obviamente o seu caso.
      A primeira pergunta é direta: um título do Tesouro é um título de dívida pública, emitido pelo governo. O seu titular tem um crédito sobre o Estado no valor nominal do título. Significa que ao chegar à maturidade (5, 10, 20 ,30 anos…) o Estado garante o pagamento do valor nominal do título. Os certificados de aforro inserem-se nesta categoria de títulos da dívida pública.
      Reformas: temos três vias como mecanismo para estabelecer a pensão de reforma de cada cidadão-trabalhador
      1. A primeira via de pensões de reforma é expressa pela Caixa Nacional de Pensões ou pela Caixa Geral de Aposentações. Dir-se-á que as pessoas empregadas atualmente com os seus descontos para a reforma estão a pagar para os reformados atuais, o que é feito ao abrigo de princípios de solidariedade e de redistribuição. Diz-se também que se trata de sistema de solidariedade geracional. As pessoas que trabalham hoje pagam para as pessoas que estão reformadas hoje e assim sucessivamente de geração em geração.
      2. A segunda via corresponde ao rendimento proporcionado pelos planos de pensões promovidos pelas empresas ou outras entidades coletivas;
      Um fundo de pensões funciona pois como um mealheiro que é “alimentado” progressivamente ao longo da vida ativa e pode ser definido como sendo um património exclusivamente afeto à realização de um ou mais planos de pensões, de uma ou mais empresas.
      Esta segunda via do sistema de pensões funciona, como regra geral, em regime de capitalização, gerindo as contribuições das empresas, e possivelmente também dos trabalhadores, a serem canalizadas para um fundo de pensões. As pensões serão, mais tarde, pagas a partir das contribuições realizadas ao longo da vida e que haviam sido canalizadas para o fundo de pensões e também com os rendimentos gerados pelas aplicações financeiras do fundo de pensões.
      Note-se que os trabalhadores aparecem aqui como investidores passivos delegando a gestão das contribuições para a reforma ao fundo de pensões
      Quando se entra em planos de reforma por capitalização – é o caso dos fundos de pensões -, está-se exposto ao risco do mercado de capitais, uma vez que os fundos de pensões fazem aí aplicações com o objetivo de obterem rendimentos.
      3. A terceira via que tem mais a ver com os planos de poupança-reforma, os nossos PPR. A reforma está associada aos rendimentos com origem nas poupanças individuais que foram realizadas ao longo da vida.

      Júlio Mota

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